sábado, 9 de fevereiro de 2013

Trecho do Livro Budapeste, de Chico Buarque.


  Vinha Kriska toda falante, os passos dos patins retinindo na calçada, os lampejos de letreiros e faróis na cara, mas nem bem nos sentamos à luz chapada da cafeteria do hotel, acendeu um cigarro e emudeceu. Pudera, aquele era um recinto tão vazio e despojado que depois de apontar as paredes lisas, a mesa de vidro, a cadeira de metal, o garçom de branco, a garrafa, o copo, o cinzeiro, o isqueiro, o fogo e o cigarro de marca Fecske, sendo fecske a andorinha impressa no maço, fiquei sem assunto para puxar. E uma boa meia hora permanecemos assim, olhando as cinzas no cinzeiro, porque eu não tinha como apontar as coisas que me passavam pela cabeça, minha mulher em Londres, as meninas de patins em Ipanema, a risada fina do meu sócio, o olho azul do meu cliente sem pestanas, o homem que escrevia em mulheres, os escritores anônimos em Istambul, as meninas de patins em Ipanema, minha mulher em Londres. 
   Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela, tentando ler seus pensamentos depressa, antes que virassem palavras húngaras. Aí ela se sacudiu inteira, como num calafrio, fazendo a mochila escorregar pelas costas, e buscou um cartão de visita, que rabiscou a lápis e me entregou. E levantou-se e foi-se embora sem se despedir, deslizando de patins no tapete. Acho que me apeguei àquele silêncio, e a fim de prolongá-lo me recolhi ao quarto, onde passei o resto da noite olhando para o teto. 
   Tive um pouco de fome, mas não liguei para a copa, na Vanda também pensei um pouco, mas não liguei para Londres. Ao ouvir os sinos da manhã, as portas batendo, bandejas tombando, vidros se espatifando e camareiras discutindo no corredor, peguei no sono. E dormi doze horas de um sono só, porque agora eu tinha um pensamento simples. O meu pensamento era um cartão de visita na mesa-de-cabeceira, impresso com o nome dela, Fülemüle Krisztina, e o endereço, Tóth utca, 84,I7, Újpest, mais a anotação do horário das aulas, 20h00 - 22h00, e de uma quantia, forintes 3.000, que como diária me pareceu razoável. [...]

Budapeste, de Chico Buarque.

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